SANGUE DE BOI
Havia um barulho de vozes, rizadas e gritos de crianças na rua em frente da minha casa. Eram os meninos e as meninas da vizinhança que chegavam para que eu me juntasse a elas. O objetivo era o mesmo de todas as quartas-feiras. Irmos todos até o Matadouro Municipal apanhar as entranhas dos animais que seriam abatidos. Naquela época não se vendiam as entranhas de bois e vacas, elas era jogadas no rio. Para não haver brigas, tínhamos um trato a qual órgão do animal cada um teria direito a cada dia. Era um rodízio para evitar que os mais fracos ficassem sempre com o pedaço ruim. Naquele dia meu quinhão era o estômago, também conhecido como bucho. O bucho era entregue como tirado do animal e partido ao meio porque seu tamanho dava para duas famílias. Lá íamos nós, todos descalços pisando na grama fria daquela manhã de julho ainda sem sol. O orvalho frio da manhã deixava a grama do pasto toda branca. Depois de algum tempo caminhando sobre aquele orvalho frio, as solas dos pés adormeciam, ficando insensíveis ao toque ou espinhos que penetravam ali pelo percurso. No caminho cortávamos transversalmente a avenida que levava até o cemitério da cidade. Era um lugar lúgubre. Na margem da avenida, plantaram, há muitos anos, vários eucaliptos que estavam enormes e com os troncos pintados de branco, o que dava ainda mais um aspecto assombroso. O barulho das folhas ao vento só aumentava o meu medo de cruzar aquela avenida. Alguns meninos mais ousados davam alguns gritos de desafio que ecoavam longe. Atravessando a avenida do cemitério, já dava para ver o telhado do Matadouro lá embaixo na margem do rio. Ouvia-se o mugido dos animais. Era um mugido triste, um lamento. Sempre tive a impressão de que os animais sabiam que iam morrer. Era para mim um dia triste este de buscar entranhas de animais. Era-me estranho apanhar aquele pedaço de entranha ainda quente e colocá-la num saco de estopa, cheirando açougue. Saltamos a porteira que dividia o terreno do Matadouro de uma chácara. Ao aproximarmos, ouvia-se, como sempre, a voz de trovão do “Mato Grosso”. “Mato Grosso” era um vaqueiro que tinha este apelido porque trazia o gado do Estado que tem esse nome. Era esguio, rosto murcho, usava sempre um chapéu de vaqueiro, roupa típica de quem vive montado, botas de cano alto, esporas e tinha um enorme bigode que escondia o lábio superior da boca. Não abandonava o cigarro confeccionado a mão com fumo de corda. Aquele cheiro de fumo característico impregnava o ar. Naquele dia, o “Mato Grosso” parecia nervoso. Uma vaca que não queria entrar no corredor da morte deixou-o ainda mais impaciente. Sacou a faca da cintura e a cutucou várias vezes na traseira, deixando-a sem opção. A vaca ao passar sob um andaime, onde ficava um homem em pé munido de uma barra de ferro pesada, sentia na nuca o peso daquele ferro, caindo inerte, sendo puxada para ser pendurada com o ventre para cima em quatro paus fincados no chão. Com maestria “Mato Grosso” a sangrava cortando umas das artérias do pescoço e em poucos minutos estava em seu interior, puxando todas as entranhas para fora. Como naquele dia “Mato Grosso” estava estranho, resolveu fazer uma brincadeira com todas as crianças. Assim que entramos no recinto do Matadouro, ele fechou a porta. Não disse nada. A primeira vaca que rolou inerte, ele e seus amigos a penduraram nos quatro paus. Como fazia sempre, dirigiu-se até o pescoço do animal e furou uma artéria jugular, fazendo o sangue esguichar longe. Neste momento ele tapou o buraco da artéria com a mão e pediu um copo a alguém. Encheu o recipiente com aquele líquido vermelho, solvendo-o em uma longa golada, manchando a camisa com o pouco se sangue que escorreu pelo canto da boca. O rosto daquele homem estava iluminado pelo sol que entrava pela fresta das tábuas da parede do Matadouro. Deu para ver sua boca vermelha pelo sangue do animal. Limpou-a com a manga da camisa e deu um ultimato. Hoje todos vão ter que beber sangue para ficar forte. Falou tão alto que tive a impressão que sentia seu hálito de sangue. A mão direita continuava tapando a artéria do animal. Os amigos do “Mato Grosso” riam do nosso medo. Um deles até pediu para tomar um pouco de sangue, o que foi prontamente atendido. Agora você, disse aquele vozeirão para uma menina que estava na frente. Ela ameaçou chorar. O irmão dela tomou a frente, sugerindo que ele tomasse primeiro. “Mato Grosso” sorriu alto elogiando a coragem do menino. Fez um discurso sobre o machismo do rapaz. Com as mãos trêmulas o menino segurou o copo, pôs sob a mão do “Mato Grosso” quando o sangue jorrou. Ao atingir meio copo de sangue, ele fechou novamente a artéria com a mão. Assim todos foram tomando. Na minha vez, a cabeça parecia não pensar. Só caminhei até o lado daquele homem, que visto assim tão de perto parecia um monstro. Tinha um cheiro típico de cavalo e vacas. Ele falou alguma coisa que todos riram. Nem entendi o que disse. Quando ele afastou a mão da jugular da vaca, o sangue jorrou forte para dentro do copo já todo lambuzado. O líquido vermelho e grosso estava quente e espumante. Peguei o copo e levei-o à boca e sorvi sem respirar para não sentir o gosto. Percebia aquele líquido grosso descendo pelo esôfago, chegando ao estômago vazio. Não via a hora de cair fora dali. Num instante todo o sangue da vaca havia se esgotado. Em segundos as entranhas estavam no chão. Autorizados, avançamos para nosso quinhão. O bucho, todo sujo, partido ao meio estava à minha disposição. Peguei-o e enfiei rapidamente dentro do saco. Fedia a fezes de vaca. Pouco importava, queria estar fora dali. O estômago pesava uma tonelada. Alguém abriu a pesada porta do Matadouro no mesmo instante que todas as crianças saíram correndo. Há poucos passos dali, eu vomitava tão forte que as golfadas saíam pela boca caindo longe. Eram postas de sangue coagulado que meu organismo recusava e expulsava com força para fora. Nem percebi o caminho de volta para casa. Cheguei apressado em casa, despejando o produto da matança em um tacho de água fervente que estava aguardando. Fui direto para cama com fortes tonturas. Passavam pela minha cabeça o golpe mortal dado naqueles animais. As entranhas à vista. O vozeirão daquele vaqueiro, seu riso. Adormeci, só acordando quando a minha irmã acordou-me para comer uma suculenta dobradinha apimentada à moda baiana.
Rubens Miranda
OBS: Escrito sem correção de uma sentada só.
Havia um barulho de vozes, rizadas e gritos de crianças na rua em frente da minha casa. Eram os meninos e as meninas da vizinhança que chegavam para que eu me juntasse a elas. O objetivo era o mesmo de todas as quartas-feiras. Irmos todos até o Matadouro Municipal apanhar as entranhas dos animais que seriam abatidos. Naquela época não se vendiam as entranhas de bois e vacas, elas era jogadas no rio. Para não haver brigas, tínhamos um trato a qual órgão do animal cada um teria direito a cada dia. Era um rodízio para evitar que os mais fracos ficassem sempre com o pedaço ruim. Naquele dia meu quinhão era o estômago, também conhecido como bucho. O bucho era entregue como tirado do animal e partido ao meio porque seu tamanho dava para duas famílias. Lá íamos nós, todos descalços pisando na grama fria daquela manhã de julho ainda sem sol. O orvalho frio da manhã deixava a grama do pasto toda branca. Depois de algum tempo caminhando sobre aquele orvalho frio, as solas dos pés adormeciam, ficando insensíveis ao toque ou espinhos que penetravam ali pelo percurso. No caminho cortávamos transversalmente a avenida que levava até o cemitério da cidade. Era um lugar lúgubre. Na margem da avenida, plantaram, há muitos anos, vários eucaliptos que estavam enormes e com os troncos pintados de branco, o que dava ainda mais um aspecto assombroso. O barulho das folhas ao vento só aumentava o meu medo de cruzar aquela avenida. Alguns meninos mais ousados davam alguns gritos de desafio que ecoavam longe. Atravessando a avenida do cemitério, já dava para ver o telhado do Matadouro lá embaixo na margem do rio. Ouvia-se o mugido dos animais. Era um mugido triste, um lamento. Sempre tive a impressão de que os animais sabiam que iam morrer. Era para mim um dia triste este de buscar entranhas de animais. Era-me estranho apanhar aquele pedaço de entranha ainda quente e colocá-la num saco de estopa, cheirando açougue. Saltamos a porteira que dividia o terreno do Matadouro de uma chácara. Ao aproximarmos, ouvia-se, como sempre, a voz de trovão do “Mato Grosso”. “Mato Grosso” era um vaqueiro que tinha este apelido porque trazia o gado do Estado que tem esse nome. Era esguio, rosto murcho, usava sempre um chapéu de vaqueiro, roupa típica de quem vive montado, botas de cano alto, esporas e tinha um enorme bigode que escondia o lábio superior da boca. Não abandonava o cigarro confeccionado a mão com fumo de corda. Aquele cheiro de fumo característico impregnava o ar. Naquele dia, o “Mato Grosso” parecia nervoso. Uma vaca que não queria entrar no corredor da morte deixou-o ainda mais impaciente. Sacou a faca da cintura e a cutucou várias vezes na traseira, deixando-a sem opção. A vaca ao passar sob um andaime, onde ficava um homem em pé munido de uma barra de ferro pesada, sentia na nuca o peso daquele ferro, caindo inerte, sendo puxada para ser pendurada com o ventre para cima em quatro paus fincados no chão. Com maestria “Mato Grosso” a sangrava cortando umas das artérias do pescoço e em poucos minutos estava em seu interior, puxando todas as entranhas para fora. Como naquele dia “Mato Grosso” estava estranho, resolveu fazer uma brincadeira com todas as crianças. Assim que entramos no recinto do Matadouro, ele fechou a porta. Não disse nada. A primeira vaca que rolou inerte, ele e seus amigos a penduraram nos quatro paus. Como fazia sempre, dirigiu-se até o pescoço do animal e furou uma artéria jugular, fazendo o sangue esguichar longe. Neste momento ele tapou o buraco da artéria com a mão e pediu um copo a alguém. Encheu o recipiente com aquele líquido vermelho, solvendo-o em uma longa golada, manchando a camisa com o pouco se sangue que escorreu pelo canto da boca. O rosto daquele homem estava iluminado pelo sol que entrava pela fresta das tábuas da parede do Matadouro. Deu para ver sua boca vermelha pelo sangue do animal. Limpou-a com a manga da camisa e deu um ultimato. Hoje todos vão ter que beber sangue para ficar forte. Falou tão alto que tive a impressão que sentia seu hálito de sangue. A mão direita continuava tapando a artéria do animal. Os amigos do “Mato Grosso” riam do nosso medo. Um deles até pediu para tomar um pouco de sangue, o que foi prontamente atendido. Agora você, disse aquele vozeirão para uma menina que estava na frente. Ela ameaçou chorar. O irmão dela tomou a frente, sugerindo que ele tomasse primeiro. “Mato Grosso” sorriu alto elogiando a coragem do menino. Fez um discurso sobre o machismo do rapaz. Com as mãos trêmulas o menino segurou o copo, pôs sob a mão do “Mato Grosso” quando o sangue jorrou. Ao atingir meio copo de sangue, ele fechou novamente a artéria com a mão. Assim todos foram tomando. Na minha vez, a cabeça parecia não pensar. Só caminhei até o lado daquele homem, que visto assim tão de perto parecia um monstro. Tinha um cheiro típico de cavalo e vacas. Ele falou alguma coisa que todos riram. Nem entendi o que disse. Quando ele afastou a mão da jugular da vaca, o sangue jorrou forte para dentro do copo já todo lambuzado. O líquido vermelho e grosso estava quente e espumante. Peguei o copo e levei-o à boca e sorvi sem respirar para não sentir o gosto. Percebia aquele líquido grosso descendo pelo esôfago, chegando ao estômago vazio. Não via a hora de cair fora dali. Num instante todo o sangue da vaca havia se esgotado. Em segundos as entranhas estavam no chão. Autorizados, avançamos para nosso quinhão. O bucho, todo sujo, partido ao meio estava à minha disposição. Peguei-o e enfiei rapidamente dentro do saco. Fedia a fezes de vaca. Pouco importava, queria estar fora dali. O estômago pesava uma tonelada. Alguém abriu a pesada porta do Matadouro no mesmo instante que todas as crianças saíram correndo. Há poucos passos dali, eu vomitava tão forte que as golfadas saíam pela boca caindo longe. Eram postas de sangue coagulado que meu organismo recusava e expulsava com força para fora. Nem percebi o caminho de volta para casa. Cheguei apressado em casa, despejando o produto da matança em um tacho de água fervente que estava aguardando. Fui direto para cama com fortes tonturas. Passavam pela minha cabeça o golpe mortal dado naqueles animais. As entranhas à vista. O vozeirão daquele vaqueiro, seu riso. Adormeci, só acordando quando a minha irmã acordou-me para comer uma suculenta dobradinha apimentada à moda baiana.
Rubens Miranda
OBS: Escrito sem correção de uma sentada só.
Um comentário:
Ai quantas cores neste texto !!!
Preciso contar:
Fui na cara de pau e me apresentei pro Lauro.Toda quarta frequentamos o cine clube.E aliás ele mora a menos de 1km da minha casa...
Sigo na batalha diária de fazer amigos neste balneário loucura.
beijo
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