13 março 2012

CONTO

EURÍDICE


Ninguém discordava que Emanuel era um homem trabalhador. Levantava-se sempre antes do sol aparecer, tomava apressado o café recém preparado pela esposa e saía ainda mastigando um pedaço de pão rumo ao seu local de trabalho. Fazia serviço geral numa pequena fazenda distante aproximadamente oito quilômetros da sua casa, cuja distância vencia em quarenta minutos a pé. Aparentava ter mais de quarenta anos de idade, rosto murcho, rugoso, queimado pelo sol, barba sempre por fazer. Sua estatura não passava de um metro e sessenta e cinco centímetros. Seu corpo era atarracado e rijo, as mãos eram ásperas, cheias de calos, resultado do serviço braçal diário. Penteava seus cabelos amarelados e sem nenhum cuidado para trás na direção da nuca. Pareciam sempre úmidos e sujos. Tinha olhos azuis, que destoavam naquele rosto de pele áspera e castigada pela luz solar. Era alcoólatra, mas só se entorpecia com o efeito do álcool depois de cumprir a estafante jornada de trabalho. Quando sóbrio, Emanuel pouco falava e era econômico nos sorrisos e, quando o fazia, deixava transparecer a falta de alguns dentes nas mandíbulas inferior e superior. Depois de entornar várias doses de pinga, quando percebia que as pernas já estavam a ponto de não suportar o peso do próprio corpo, ele ia para casa, carregando pendurada no ombro uma mochila com a marmita do almoço vazia. O talher dentro da marmita vazia emitia um som estranho durante os cambaleios do homem embriagado naquela rua escura do bairro periférico. Eurídice era a esposa do Emanuel. Quem a visse pela rua, fato raro de acontecer visto que dificilmente saía de casa, notaria que ela tinha uma expressão triste, deprimida e sempre cabisbaixa, sempre calçando chinelos velhos de couro. Tinha trinta e seis anos de idade. Era magra, media em torno de um metro e sessenta. Cabelos pretos, sem nenhum cuidado, normalmente amarrados imitando um rabo de cavalo. Ninguém se lembra de tê-la visto maquiada. Ela e Emanuel tiveram um único filho, Jordão, com quase oito anos de idade. Menino como os outros, sempre cumpridor dos seus deveres escolares e familiares. Todos os dias as dez da manhã, Jordão percorria os oito quilômetros da sua residência até a fazenda onde seu pai trabalhava para levar a comida. O pai se recusava a levar a comida pela manhã, pois segundo alegava a comida esfriava e ele não tinha onde esquentá-la. Jordão, ao voltar para casa assim que deixava a marmita para o seu pai, ainda tinha que ir à escola, que felizmente ficava a poucos quarteirões de distância da sua casa. Eurídice sabia mesmo antes de casar que Emanuel era uma pessoa que consumia muita bebida alcoólica, mas sempre acreditou que ao casarem-se ele mudaria seu comportamento. Outro fato que impulsionou a Eurídice a casar, foi que ela morava com seus pais, irmãos e irmãs, oriunda de uma família pobre, ela deduziu que pior que estava não podia ficar. Após alguns meses de casados, o casal passou a discutir muito, sempre devido a embriaguez de Emanuel, pois ele sempre chegava tarde em casa, cheirando a álcool e com a mania de sequer tomar banho. Por mais que Eurídice tentasse ignorá-lo ele sempre achava um meio de provocá-la e assim a discussão atravessava boa parte da noite, entretanto, Emanuel até então nunca tinha usado da violência com sua esposa, a discussão ficava restrita a gritos e palavrões. Certo dia, Eurídice, ao voltar para casa depois de levar o almoço para o marido, veio raciocinando no caminho de volta que talvez o Emanuel melhorasse seu humor e acabasse com o seu vício se ela tivesse um filho com ele. Foi pensando nisso que ela parou de tomar a pílula anticoncepcional sem avisá-lo, engravidando-se. Eurídice esperou a hora que lhe pareceu mais correta para dar a notícia da gravidez ao marido, assim deduziu que o melhor horário seria aquele em que Emanuel vai para o trabalho, até porque nessa hora ele está sóbrio e descansado. Foi um engano, Emanuel ficou colérico, proferiu algumas palavras de baixo calão e saiu para o trabalho batendo a porta. Eurídice descobriu que mais uma vez estava enganada. Ao levar o almoço, avistou Emanuel tangendo algumas vacas. Gritou por ele, que respondeu de onde estava, ordenando que ela deixasse o almoço dentro da pequena casinha que usava como refeitório e sequer se aproximou. Eurídice voltou para casa, como sempre, cabisbaixa. Nem percebeu o caminho de volta, absorta que estava em seus pensamentos a respeito do futuro. Foi uma gravidez muito difícil, Eurídice só começou o pré-natal no sexto mês, ainda assim porque sentiu-se mal quando voltou da fazenda onde fora levar a comida do marido. Entrou numa rua do bairro onde morava com fortes tonturas. Ao chegar perto da sua casa pensou que fosse desmaiar. Segurou-se no muro e ficou parada, sua cabeça parecia um turbilhão. A vizinha que estava varrendo o quintal percebeu o drama de Eurídice, vindo correndo ao seu encontro para acudi-la. Alguém chamou a ambulância que a levou para o pronto socorro. Eurídice levou uma bronca da médica que a socorreu, afinal a roupa que usava não era de uma grávida de seis meses, extremamente apertada. Outro detalhe percebido pela médica é que a Eurídice estava anêmica e precisava urgente tomar algumas vitaminas e alimentar-se melhor. Ali mesmo no pronto socorro ela recebeu uma injeção com um composto vitamínico. Ela ganhou da médica alguns comprimidos de amostra grátis das vitaminas que deveria tomar todos os dias pela manhã. Eurídice voltou para casa a pé, pois não tinha dinheiro para o transporte coletivo. A vizinha que a socorreu estava aguardando a volta de Eurídice no seu portão. Ela se prontificou a ajudá-la no restante da gravidez, inclusive se oferecendo para levar a comida do Emanuel. De imediato lhe emprestou dois vestidos largos e mais confortáveis. A partir desse dia a vizinha passou a ajudá-la em alguns trabalhos domésticos e também servir de companhia nas idas ao médico. Emanuel sequer tomava conhecimento de todo esses acontecimentos. Entretanto as brigas continuavam e a embriaguez do marido só piorava, inclusive Emanuel passou a chegar mais tarde em casa, o que obrigava Eurídice ficar aguardando-o para esquentar a comida. Mesmo que ela fosse para a cama, ao chegar, ele a acordava aos gritos. Numa noite ela se recusou a levantar, pois estava sentindo-se muito cansada e com os pés inchados. Ele não quis saber de diálogo, puxou-a pelo braço quase derrubando-a da cama. Assim que ela levantou, ele a empurrou fortemente contra a parede. Foi a primeira vez desde que casaram que Emanuel usou da violência. Se Eurídice soubesse o que o seu silêncio iria provocar desse dia em diante, ela teria reagido àquele empurrão. Todos os dias Emanuel se achava no direito de empurrar Eurídice com violência. Além dos palavrões ofensivos de sempre, agora passou a ameaçá-la com o seu cinto. Eurídice começou a ficar preocupada com a criança que trazia no seu ventre. No mês de setembro, às três horas da madrugada Eurídice sentiu um liquido quente escorrendo em sua perna. Levantou-se assustada e foi até a cozinha para ver o que estava acontecendo. Acendeu a luz e passou a mão na coxa esquerda. Sua mão ficou suja com um líquido escuro misturado ao seu sangue. Era hora da criança nascer, pensou. Da cozinha mesmo chamou pelo Emanuel, que, deitado estava, deitado ficou. Eurídice pegou uma pequena sacola, colocou dentro algumas roupas íntimas e um vestido. Foi segurando a barriga até a casa da vizinha e a chamou aos gritos. A vizinha logo atendeu e sem que precisasse dizer o motivo, já foi ligando para mandarem uma ambulância. Eurídice estava se contorcendo em dores, sentada numa cadeira improvisada pela vizinha. Não se sabe se devido às dores e os gemidos de Eurídice, ou se realmente a ambulância havia demorado muito para chegar. Assim nasceu um menino que passou a chamar-se Jordão. O menino cresceu dentro desse lar tumultuado, vendo todos os dias sua mãe sendo empurrada pelo pai e com as constantes ameaças de bater nela com o seu cinto. Algumas vezes até viu o pai dar murros na mãe por qualquer bobagem e ela suportava aquela humilhação. Na verdade Eurídice não reagia porque não tinha onde arranjar meios para sustentar o filho, caso saísse de casa. No aniversário de 8 anos do Jordão, Eurídice, que nunca havia dado sequer um presente de aniversário para ele, resolveu ir até o armazém próximo a sua casa para comprar um brinquedo simples. Deixou lá anotado para que o Emanuel fosse pagá-lo. Jordão, ao chegar em casa vindo da escola, viu sobre a mesa a bola de couro que a mãe lhe havia comprado. Sua alegria foi tão grande que nem tirou o uniforme escolar, pegou a bola e foi chutá-la em frente a sua casa. Quando Emanuel chegou, bêbado como sempre, viu o filho deitado no chão do seu quarto abraçado com o brinquedo. Perguntou se era dele a bola. Jordão contou que havia ganho de presente de aniversário da mãe. Eurídice que estava entrando no quarto confirmou que comprara mas que era para ele passar no armazém e pagar. Emanuel ficou parado por alguns segundos cabisbaixo, depois cheio de raiva atirou em Eurídice a mochila com a marmita. Em seguida retirou o cinto e passou a espancá-la. Jordão ficou desesperado, empurrou o pai tentando ajudar a mãe. Eurídice pegou uma vassoura e começou defender-se, desferindo golpes que acertavam o braço do marido. Emanuel percebeu que estava em desvantagem devido sua embriaguez e ameaçou-a gritando repetidamente: amanhã eu te mato! amanhã eu te mato! Ele passou pelo fogão e com o cinto que tinha na mão jogou toda a comida no chão. Eurídice recolheu-se no quarto do seu filho. De lá ainda ouvia as ameaças de Emanuel, sempre repetindo a mesma ameaça: amanhã eu te mato! Eurídice passou a noite em claro, com medo de que Emanuel a pegasse dormindo e fizesse alguma besteira. Eram 5 horas da manhã quando Eurídice ouviu Emanuel levantar-se. Ele lavou o rosto, colocou a roupa de trabalho e foi para a fazenda, sem tomar o café da manhã. Eurídice ainda ficou um bom tempo na cama remoendo o que poderia acontecer. Estava muito preocupada com as ameaças do marido. Pensou se o pior acorresse quem iria tomar conta do Jordão. Olhou para o filho que ainda dormia e sentiu um aperto no peito e uma vontade de chorar. Acariciou-o. O dia já estava claro quando Eurídice levantou. Estava cansada, sonolenta, seu cérebro parecia descoordenado. Foi para a cozinha preparar o café para ela e para o filho. Assim que ficou pronto foi até o quarto chamar o filho. Pediu para ele ficar tomando conta da casa porque ela precisaria sair, mas que voltaria logo. Realmente sua ausência foi rápida, e assim que chegou já foi para o fogão preparar o almoço para o marido. Jordão estava chutando a bola com outros coleguinhas quando sua mãe o chamou para que ele fosse levar a comida ao seu pai. Antes, porém, Jordão comeu seu almoço que já estava sobre a mesa fumegante. O menino se pôs a caminho com a mochila guarnecida da comida quente. Na fazenda avistou seu pai na beira do riacho, roçando mato. Foi até lá comunicar que a comida estava no rancho. Ele levantou a cabeça, enxugou o suor com a manga da camisa e nada respondeu. Jordão ficou ali parado sem saber o que fazer. Como o pai voltou a dar braçadas de foice no mato, virou-se e voltou para casa. À noite Emanuel não voltou para casa. No bar ninguém o viu. No outro dia, Eurídice não chamou o Jordão para levar a comida. Às duas horas da tarde uma camionete parou em frente o portão da casa de Eurídice, era o gerente da fazenda. Estava apreensivo. Chamou pela Eurídice que veio atendê-lo. Ele tirara o chapéu panamá que tinha na cabeça e gaguejando muito informou que o seu marido fora encontrado morto no pasto da fazenda. Informou-a, ainda, que a polícia já havia retirado o corpo e que havia suspeita de envenenamento. Eurídice não esboçou nenhuma reação de surpresa, apenas agradeceu, virou as costas e se recolheu à sua casa.



Rubens Miranda

Verão de 2012

26 julho 2011

QUANDO A PRIMAVERA VIER

Quando a primavera vier vou visitar a Maria, não a irmã mais velha, mas a mais experiente, a que veio primeiro. Conversarei com o seu marido e contaremos histórias da vida passada e recente, depois almoçaremos a comida caseira feita pela Maria em panelas de barro e ferro. Até parece que estou sentindo aquele cheirinho bom no ar, em pleno Bairro do Jabaquara. Depois irei ver a Odete, a que veio em segundo lugar. Sorriso tímido, bem acanhado. Foi a que me cuidou na infância enquanto a mãe ia para a roça colher algodão. Sofreu muito na sua juventude em função de uma bronquite crônica, que só melhorou quando casou e foi morar na poluída Diadema. Ela e seu marido ainda moram na mesma casa, há 40 anos!! Em seguida verei o Osvaldo, o terceiro, lá em São Bernardo do Campo, que não o vejo há muito tempo. Daremos boas risadas, como sempre. Aliás o Osvaldo não ri, ele gargalha, e alto. Se a Laura, sua esposa, estiver por perto ela o reprime. Como eles gostam muito da minha muqueca de peixe, se der tempo vou prepará-la. De volta para Araraquara irei logo ver o Zeca, o quarto filho a encher os cômodos da família Miranda. Esse tem história que caberia em vários livros. Não tenho nenhuma lembrança de vê-lo bravo, aliás, minto, uma vez ele ficou tão bravo comigo porque enquanto ele estava trabalhando eu encontrei a chave da lambreta dele e fui zoar com os amigos. Queimamos toda a gasolina que estava no tanque para o desespero dele. Ele ia me xingar e não saia nada, ele só gaguejava. Pura maldade de adolescente sem juízo. Tem um coração que não cabe no peito. Ainda nessa primavera devo ir até a casa da Nice, a sexta presença dos Miranda, pois o quinto foi esse blogueiro, A Nice é aquela que ainda não sabe o que é maldade. Tudo para ela está bom. Todas as pessoas são boas. O mundo é bom. O seu marido Geraldino, é esse mesmo o nome dele, um negro de olhos azuis. Eu disse a ele que esses olhos azuis são originários da descendência de europeus, boa parte deles holandeses quando invadiram o norte e o nordeste do Brasil na época do Império. Eles mantinham relações sexuais com as escravas, na verdade a maioria das vezes era estupro. Ele, simples como é, apenas sorri da história e não acredita. E agora a Tide, a costureira, a sétima a dar a cara na família. Minha mãe sentiu as dores e contrações do parto de madrugada – não sei porque essas coisas só acontecem de madrugada - e chamou meu pai, que imediatamente foi buscar a parteira. Detalhe, nossa família morava a cinco quilômetros da cidade, onde residia a parteira, uma senhora gorda, alcoólatra. Meu pai saiu às cinco da manhã e só voltou às 10 horas. Quando entraram em casa encontraram minha mãe com a Tide no colo. Nasceu sem ajuda de ninguém. A parteira gorda, quando a viu, deu um sorriso largo, sentou-se pesadamente na borda da cama e toda molhada de suor, enfiou a mão na sacola que trazia, tirou de lá um litro de pinga e no gargalho solveu a metade, para comemorar, como disse. Dormiu ao lado da minha mãe o dia inteiro, bêbada. Bem, ainda não acabou, pois antes de terminar a primavera, vou ainda na casa da Nina, a oitava e última. Visitar a Nina é sempre uma experiência diferente. Conversamos, sorrimos e aí fazemos um silêncio profundo. É nesses silêncios que mais nos comunicamos. Os olhares se perdem e quando se encontram a sensação é que acabamos de nos encontrar novamente. É uma viagem sem sair do lugar. A massa física fica imóvel, mas o espírito (pensamento) voa longe. Quando a primavera estiver chegando ao fim, voltarei para casa, mentalmente revisarei as visitas, me recolherei no silêncio do meu quarto e certamente sei que vou chorar.

28 junho 2011

ESTAMOS NA ÉPOCA DOS IPÊS ROSA

É só sair de casa e logo ali eu encontro muitos pés de ipês rosa como este da foto.
A árvore florida. Praticamente não há folhas, só flores.
detalhes dos cachos de flores