04 abril 2006

TEMPOS IDOS


Rubens Miranda, aos 19 anos, metido em seu uniforme escolar obrigatório. O dinheiro do trabalho sofrido (vide texto do dia 03/03/06) só deu para a matrícula e o uniforme. O sapato era emprestado do irmão mais velho. Ele calçava 40 e eu 38. No meu pé parecia aquele sapato do Carlitos. O pé esquerdo atrás da planta era para esconder pelos menos um pé. Enfim tudo já passou, a vida agora é outra, mas continua difícil. Venceremos, afinal.

03 abril 2006

VICENTE, UM PERNAMBUCANO


Com dezenove anos eu estava tentando voltar a estudar e completar a oitava série. A diretora do ginásio resolveu que os interessados deveriam pagar vinte e cinco cruzeiros da matrícula, mesmo se tratando de uma escola estadual. Eu estava desempregado e emprego naquela época era muito mais difícil. O único local de trabalho que encontrei foi numa fábrica de óleo de algodão. O serviço era pesado e executado sob o sol. Minha função era descarregar gôndolas de trem cheias de sementes de algodão. Meus companheiros de serviço eram todos nordestinos, na sua maioria, pernambucanos. Eles tinham pena da minha fragilidade e inexperiência com a pá. Insistiam para que eu não acompanhasse o ritmo deles. Quando tiravamos o encerado que cobria a gôndola com sementes, estas estavam tão quentes que queimavam as solas de nossos pés. A única folga que um de nós tinhamos era quando ficavamos encarregados de acompanhar a descarga das sementes que eram levadas para um barracão. O escolhido ficava na sombra, lá em cima, num corredor, acertando a boca de descarga. As sementes despencavam de uma altura de oito metros. Nos primeiros dias de trabalho eu não conseguia dormir a noite. As bolhas que formavam nas minhas mãos estouravam e ficavam latejando a noite toda. A garganta ardia, seca. Escarrava crostas de poeira e fiapos de algodão. Os pernambucanos riram muito quando lhes perguntei a respeito da garganta, da poeira e dos fiapos de algodão, afinal eles tinham um remédio muito simples, bastava passar à tarde no bar e tomar duas ou três pingas. Virou rotina. Todos os dias com os pernambucanos tomavamos duas ou três pingas. Depois riamos muito das coisas da vida. Penalizados com minha fragilidade, sempre dexavam que eu fosse tomar conta da descarga no barracão duas vezes por semana. Certo dia era a vez do Vicente, um pernambucano diferente. Era branco com sardas. Seus cabelos eram avermelhados e encaracolados. De pernambucano só tinha o sotaque. Seus dentes da frente estavam estragados e negros da nicotina dos cigarros. Num determinado dia, logo pela manhã Vicente subiu a escada e desapareceu dentro do barracão. À tarde fomos ao bar. O Vicente, que nem sempre vinha ao bar, naquele dia sequer saiu conosco. No outro dia pela manhã, o Vicente não veio trabalhar. No final do expediente a esposa do Vicente compareceu até o portão da fábrica procurando por ele. Ninguém soube dar informações. Logo pela manhã fui designado para vigiar a descarga de sementes. Subi a longa escada e fiquei lá em cima desviando a boca de descarga o dia inteiro. Para manter a rotina, à tarde fomos para o bar. Não vimos o Vicente. No outro dia, alguém subiu a escada do barracão. Lá em cima havia um cheiro forte de carne estragada. O colega avisou o chefe. Pararam as máquinas e fomos encarregados de limpar as sementes para ver o que estava acontecendo. O cheiro estava horrível. Depois de mais de uma hora, alguém gritou que era um homem morto. De onde eu estava, tremi e pensei no pior: era o Vicente. Antes mesmo que alguém confirmasse eu já estava fora do barracão, vomitando. Quando confirmaram que era o Vicente comecei a chorar convulsivamente. Quando consegui acalmar-me um pouco, fui até o Depto de Pessoal e pedi a conta para nunca mais voltar naquele local. Depois de muitos anos só passei por ali nesse último domingo (02/04/06) e fotografei o que restou daquele barracão maldito.