EURÍDICE
Ninguém discordava que Emanuel era um homem trabalhador. Levantava-se sempre antes do sol aparecer, tomava apressado o café recém preparado pela esposa e saía ainda mastigando um pedaço de pão rumo ao seu local de trabalho. Fazia serviço geral numa pequena fazenda distante aproximadamente oito quilômetros da sua casa, cuja distância vencia em quarenta minutos a pé. Aparentava ter mais de quarenta anos de idade, rosto murcho, rugoso, queimado pelo sol, barba sempre por fazer. Sua estatura não passava de um metro e sessenta e cinco centímetros. Seu corpo era atarracado e rijo, as mãos eram ásperas, cheias de calos, resultado do serviço braçal diário. Penteava seus cabelos amarelados e sem nenhum cuidado para trás na direção da nuca. Pareciam sempre úmidos e sujos. Tinha olhos azuis, que destoavam naquele rosto de pele áspera e castigada pela luz solar. Era alcoólatra, mas só se entorpecia com o efeito do álcool depois de cumprir a estafante jornada de trabalho. Quando sóbrio, Emanuel pouco falava e era econômico nos sorrisos e, quando o fazia, deixava transparecer a falta de alguns dentes nas mandíbulas inferior e superior. Depois de entornar várias doses de pinga, quando percebia que as pernas já estavam a ponto de não suportar o peso do próprio corpo, ele ia para casa, carregando pendurada no ombro uma mochila com a marmita do almoço vazia. O talher dentro da marmita vazia emitia um som estranho durante os cambaleios do homem embriagado naquela rua escura do bairro periférico. Eurídice era a esposa do Emanuel. Quem a visse pela rua, fato raro de acontecer visto que dificilmente saía de casa, notaria que ela tinha uma expressão triste, deprimida e sempre cabisbaixa, sempre calçando chinelos velhos de couro. Tinha trinta e seis anos de idade. Era magra, media em torno de um metro e sessenta. Cabelos pretos, sem nenhum cuidado, normalmente amarrados imitando um rabo de cavalo. Ninguém se lembra de tê-la visto maquiada. Ela e Emanuel tiveram um único filho, Jordão, com quase oito anos de idade. Menino como os outros, sempre cumpridor dos seus deveres escolares e familiares. Todos os dias as dez da manhã, Jordão percorria os oito quilômetros da sua residência até a fazenda onde seu pai trabalhava para levar a comida. O pai se recusava a levar a comida pela manhã, pois segundo alegava a comida esfriava e ele não tinha onde esquentá-la. Jordão, ao voltar para casa assim que deixava a marmita para o seu pai, ainda tinha que ir à escola, que felizmente ficava a poucos quarteirões de distância da sua casa. Eurídice sabia mesmo antes de casar que Emanuel era uma pessoa que consumia muita bebida alcoólica, mas sempre acreditou que ao casarem-se ele mudaria seu comportamento. Outro fato que impulsionou a Eurídice a casar, foi que ela morava com seus pais, irmãos e irmãs, oriunda de uma família pobre, ela deduziu que pior que estava não podia ficar. Após alguns meses de casados, o casal passou a discutir muito, sempre devido a embriaguez de Emanuel, pois ele sempre chegava tarde em casa, cheirando a álcool e com a mania de sequer tomar banho. Por mais que Eurídice tentasse ignorá-lo ele sempre achava um meio de provocá-la e assim a discussão atravessava boa parte da noite, entretanto, Emanuel até então nunca tinha usado da violência com sua esposa, a discussão ficava restrita a gritos e palavrões. Certo dia, Eurídice, ao voltar para casa depois de levar o almoço para o marido, veio raciocinando no caminho de volta que talvez o Emanuel melhorasse seu humor e acabasse com o seu vício se ela tivesse um filho com ele. Foi pensando nisso que ela parou de tomar a pílula anticoncepcional sem avisá-lo, engravidando-se. Eurídice esperou a hora que lhe pareceu mais correta para dar a notícia da gravidez ao marido, assim deduziu que o melhor horário seria aquele em que Emanuel vai para o trabalho, até porque nessa hora ele está sóbrio e descansado. Foi um engano, Emanuel ficou colérico, proferiu algumas palavras de baixo calão e saiu para o trabalho batendo a porta. Eurídice descobriu que mais uma vez estava enganada. Ao levar o almoço, avistou Emanuel tangendo algumas vacas. Gritou por ele, que respondeu de onde estava, ordenando que ela deixasse o almoço dentro da pequena casinha que usava como refeitório e sequer se aproximou. Eurídice voltou para casa, como sempre, cabisbaixa. Nem percebeu o caminho de volta, absorta que estava em seus pensamentos a respeito do futuro. Foi uma gravidez muito difícil, Eurídice só começou o pré-natal no sexto mês, ainda assim porque sentiu-se mal quando voltou da fazenda onde fora levar a comida do marido. Entrou numa rua do bairro onde morava com fortes tonturas. Ao chegar perto da sua casa pensou que fosse desmaiar. Segurou-se no muro e ficou parada, sua cabeça parecia um turbilhão. A vizinha que estava varrendo o quintal percebeu o drama de Eurídice, vindo correndo ao seu encontro para acudi-la. Alguém chamou a ambulância que a levou para o pronto socorro. Eurídice levou uma bronca da médica que a socorreu, afinal a roupa que usava não era de uma grávida de seis meses, extremamente apertada. Outro detalhe percebido pela médica é que a Eurídice estava anêmica e precisava urgente tomar algumas vitaminas e alimentar-se melhor. Ali mesmo no pronto socorro ela recebeu uma injeção com um composto vitamínico. Ela ganhou da médica alguns comprimidos de amostra grátis das vitaminas que deveria tomar todos os dias pela manhã. Eurídice voltou para casa a pé, pois não tinha dinheiro para o transporte coletivo. A vizinha que a socorreu estava aguardando a volta de Eurídice no seu portão. Ela se prontificou a ajudá-la no restante da gravidez, inclusive se oferecendo para levar a comida do Emanuel. De imediato lhe emprestou dois vestidos largos e mais confortáveis. A partir desse dia a vizinha passou a ajudá-la em alguns trabalhos domésticos e também servir de companhia nas idas ao médico. Emanuel sequer tomava conhecimento de todo esses acontecimentos. Entretanto as brigas continuavam e a embriaguez do marido só piorava, inclusive Emanuel passou a chegar mais tarde em casa, o que obrigava Eurídice ficar aguardando-o para esquentar a comida. Mesmo que ela fosse para a cama, ao chegar, ele a acordava aos gritos. Numa noite ela se recusou a levantar, pois estava sentindo-se muito cansada e com os pés inchados. Ele não quis saber de diálogo, puxou-a pelo braço quase derrubando-a da cama. Assim que ela levantou, ele a empurrou fortemente contra a parede. Foi a primeira vez desde que casaram que Emanuel usou da violência. Se Eurídice soubesse o que o seu silêncio iria provocar desse dia em diante, ela teria reagido àquele empurrão. Todos os dias Emanuel se achava no direito de empurrar Eurídice com violência. Além dos palavrões ofensivos de sempre, agora passou a ameaçá-la com o seu cinto. Eurídice começou a ficar preocupada com a criança que trazia no seu ventre. No mês de setembro, às três horas da madrugada Eurídice sentiu um liquido quente escorrendo em sua perna. Levantou-se assustada e foi até a cozinha para ver o que estava acontecendo. Acendeu a luz e passou a mão na coxa esquerda. Sua mão ficou suja com um líquido escuro misturado ao seu sangue. Era hora da criança nascer, pensou. Da cozinha mesmo chamou pelo Emanuel, que, deitado estava, deitado ficou. Eurídice pegou uma pequena sacola, colocou dentro algumas roupas íntimas e um vestido. Foi segurando a barriga até a casa da vizinha e a chamou aos gritos. A vizinha logo atendeu e sem que precisasse dizer o motivo, já foi ligando para mandarem uma ambulância. Eurídice estava se contorcendo em dores, sentada numa cadeira improvisada pela vizinha. Não se sabe se devido às dores e os gemidos de Eurídice, ou se realmente a ambulância havia demorado muito para chegar. Assim nasceu um menino que passou a chamar-se Jordão. O menino cresceu dentro desse lar tumultuado, vendo todos os dias sua mãe sendo empurrada pelo pai e com as constantes ameaças de bater nela com o seu cinto. Algumas vezes até viu o pai dar murros na mãe por qualquer bobagem e ela suportava aquela humilhação. Na verdade Eurídice não reagia porque não tinha onde arranjar meios para sustentar o filho, caso saísse de casa. No aniversário de 8 anos do Jordão, Eurídice, que nunca havia dado sequer um presente de aniversário para ele, resolveu ir até o armazém próximo a sua casa para comprar um brinquedo simples. Deixou lá anotado para que o Emanuel fosse pagá-lo. Jordão, ao chegar em casa vindo da escola, viu sobre a mesa a bola de couro que a mãe lhe havia comprado. Sua alegria foi tão grande que nem tirou o uniforme escolar, pegou a bola e foi chutá-la em frente a sua casa. Quando Emanuel chegou, bêbado como sempre, viu o filho deitado no chão do seu quarto abraçado com o brinquedo. Perguntou se era dele a bola. Jordão contou que havia ganho de presente de aniversário da mãe. Eurídice que estava entrando no quarto confirmou que comprara mas que era para ele passar no armazém e pagar. Emanuel ficou parado por alguns segundos cabisbaixo, depois cheio de raiva atirou em Eurídice a mochila com a marmita. Em seguida retirou o cinto e passou a espancá-la. Jordão ficou desesperado, empurrou o pai tentando ajudar a mãe. Eurídice pegou uma vassoura e começou defender-se, desferindo golpes que acertavam o braço do marido. Emanuel percebeu que estava em desvantagem devido sua embriaguez e ameaçou-a gritando repetidamente: amanhã eu te mato! amanhã eu te mato! Ele passou pelo fogão e com o cinto que tinha na mão jogou toda a comida no chão. Eurídice recolheu-se no quarto do seu filho. De lá ainda ouvia as ameaças de Emanuel, sempre repetindo a mesma ameaça: amanhã eu te mato! Eurídice passou a noite em claro, com medo de que Emanuel a pegasse dormindo e fizesse alguma besteira. Eram 5 horas da manhã quando Eurídice ouviu Emanuel levantar-se. Ele lavou o rosto, colocou a roupa de trabalho e foi para a fazenda, sem tomar o café da manhã. Eurídice ainda ficou um bom tempo na cama remoendo o que poderia acontecer. Estava muito preocupada com as ameaças do marido. Pensou se o pior acorresse quem iria tomar conta do Jordão. Olhou para o filho que ainda dormia e sentiu um aperto no peito e uma vontade de chorar. Acariciou-o. O dia já estava claro quando Eurídice levantou. Estava cansada, sonolenta, seu cérebro parecia descoordenado. Foi para a cozinha preparar o café para ela e para o filho. Assim que ficou pronto foi até o quarto chamar o filho. Pediu para ele ficar tomando conta da casa porque ela precisaria sair, mas que voltaria logo. Realmente sua ausência foi rápida, e assim que chegou já foi para o fogão preparar o almoço para o marido. Jordão estava chutando a bola com outros coleguinhas quando sua mãe o chamou para que ele fosse levar a comida ao seu pai. Antes, porém, Jordão comeu seu almoço que já estava sobre a mesa fumegante. O menino se pôs a caminho com a mochila guarnecida da comida quente. Na fazenda avistou seu pai na beira do riacho, roçando mato. Foi até lá comunicar que a comida estava no rancho. Ele levantou a cabeça, enxugou o suor com a manga da camisa e nada respondeu. Jordão ficou ali parado sem saber o que fazer. Como o pai voltou a dar braçadas de foice no mato, virou-se e voltou para casa. À noite Emanuel não voltou para casa. No bar ninguém o viu. No outro dia, Eurídice não chamou o Jordão para levar a comida. Às duas horas da tarde uma camionete parou em frente o portão da casa de Eurídice, era o gerente da fazenda. Estava apreensivo. Chamou pela Eurídice que veio atendê-lo. Ele tirara o chapéu panamá que tinha na cabeça e gaguejando muito informou que o seu marido fora encontrado morto no pasto da fazenda. Informou-a, ainda, que a polícia já havia retirado o corpo e que havia suspeita de envenenamento. Eurídice não esboçou nenhuma reação de surpresa, apenas agradeceu, virou as costas e se recolheu à sua casa.
Rubens Miranda
Verão de 2012
A Igreaja, construída no meio do nada. Abandonada está desmoronando
A torre da igreja, sempre alta como manda a tradição católica, mesmo que o Templo esteja perdido no meio do nada
A Pia Batismal, que um dia introduziu vidas ao cristianismo, tirando-as do paganismo
Confessinário. Sabe-se lá quantos pecadinhos foram contados aqui. Sim, pecadinhos, porque pecadões ninguém conta, nem para o padre.
Os amigos e as amigas que me visitam gostam de conhecer o meu pomarzinho, mas já adverti a todos, o pomarzinho está temporariamente interditado. O motivo é esse ninho de beija-flor no pé de laranjeira. Quando alguém se aproxima, ela fica nervosa, voa fazendo barulho, paira no ar e fica encarando. Então para não estressar o bichinho e prejudicar os fututos filhos, ninguém mais entra no quintal. Nem o dono, só o beija-flor.
Este ano meu pezinho de uvaia quase não frutificou. Colhi tão poucos frutos que não deu para distribuir. Este da foto tive que deliciá-lo vagarosamente porque era o último.
Dias desses fui a São Paulo, Capital, e encontrei a cidade com muitos rinocerontes coloridos. É a rinomania. Este da foto estava instalado dentro do Terminal Rodoviário do Tietê
A árvore florida. Praticamente não há folhas, só flores.
detalhes dos cachos de flores
A única árvore que salvou-se da voracidade humana que teima em dizimar florestas para plantar cana.
O café pronto para ser colhido, mas inexplicavelmente ninguém o faz, porisso está se perdendo.
Com a proibição da queimada da cana de açúcar, a colheitadeira faz o trabalho de 60 homens. A plantação de cana chega nos arredores da cidade. Perceba a cidade ao fundo.
O meu amigo Tarcio foi o único brasileiro convidado para participar do mês das Artes na Bélgica. Ele me pediu e fiz a foto para o cartaz.
Codornas ao vinho, cobertas com uma fatia de bacon. Não deu tempo de colocar numa travessa bonita.
"Meu pai infante", é o título desse retrato feito pela Dani Miranda (minha filha). Ela trouxe para a tela uma foto minha quando eu tinha 10 anos, a única que possuo de minha atribulada infância. O método da pintura utilizado foi a "têmpera de ovo" que consiste misturar terra naturalmente colorida com gema de ovo. Depois de misturada, amassa-a com a moleta sobre uma pedra lisa de mármore. Está pronta a tinta. Depois de seca a pintura passa-se o verniz feito com a clara de ovo. A terra de tonalidade marrom escuro eu peguei de um cupinzeiro na margem de um riacho aqui de Araraquara. A cor escura é o efeito do processo de decomposição ao longo de muitos anos de resíduos da natureza, principalmente plantas. A cor marrom eu peguei na margem da Rod. dos Bandeirantes, em Campinas. O amarelo eu perdi a etiqueta, mas acredito que foi na margem da Rod. W. Luiz, perto de Rio Claro. Tenho um pequeno estoque de terras coloridas que vou colhendo por onde passo, assim, tenho terra de São Paulo, Chapada dos Guimarães (MT) e de Canudos, na Bahia.
A PRAÇA PEDRO DE TOLEDO FICOU LOTADA PARA VER E OUVIR MARCELO GENESI